HOSPITAL DA GENTE

HOSPITAL DA GENTE
Montagem do Grupo Clariô de Teatro
Contos/cantos : Marcelino Freire
O Grupo Clariô de Teatro é um coletivo de arte resistente, que busca, através da prática da troca, en-contro e permanente discussão, entender e fomentar arte nas bordas da metrópole.
Durante alguns anos, o grupo pesquisou várias lingua-gens teatrais, passando pelo teatro infantil, realista, teatro de rua e bonecos. Até fundar, em Taboão da Ser-ra, sua sede - ESPAÇO CLARIÔ – que desde 2005 vem se consolidando como um lugar de força cultural entre os coletivos da região. E é lá que o grupo encaminha sua pesquisa enraizada nos guetos, no cotidiano do cidadão periférico.
O encontro com o escritor Marcelino Freire, cuja acidez dos contos funde-se com o espaço e a realidade local, fez com que as idéias do grupo ganhassem voz e, em fevereiro de 2008 entra em cartaz o espetáculo HOSPITAL DA GENTE, considerado uns dos espetáculos que marcaram 2008 no Brasil e que fez do GRUPO CLARIÔ o mais premiado do Estado de São Paulo no 1º Prêmio da Cooperativa Paulista de teatro.

SINOPSE
Catadas dos cantos/contos de Marcelino Freire, trabalhadoras do Brasil abrem as portas dos seus barracos para revelarem à que vieram, qual o seu papel, seu lugar dentro de uma estrutura caótica e desigual. Sem drama!
Não há o Drama.
Figuras tão conhecidas como a mendiga, a bêbada, a prostituta , a velha, a mãe ou a dona de um boteco de uma Favela Fênix qualquer, dão luz à perguntas apagadas do nosso questionário a respeito do que está acontecendo.
O que esta acontecendo?
O que você faz com a fome, tem remédio? Onde eu vou achar tanto remédio bom? Minhas asas quem mandou cortar? Capim sabe ler? Hein? E o cachorro? A cachorra? Sou puta ou não sou puta? Parado não é pior? Repartir seu quarto? Pergunta? Cadê meus dentes? Tem esforço mais esforço do que o meu esforço? Ta me ouvindo bem? Já viu amor entre porco? Entre sapo? Entre pombo? Aí diz que o pombo é bonito porque o pombo se empomba, porque o pombo corre atrás da pomba, bom é pombo assado e pronto!
O moço ta servido? A moça?

 (Clique na imagem e leia o artigo "ARTES NA BORDA DA METRÓPOLI"
por ELEILSON LEITE na Agenda da Periferia)



HOSPITAL DA GENTE E A PERIFERIA

“muitas outras obras, em todas as linguagens artísticas, surgiram para confirmar que no gueto pulsa uma arte renovadora.” (*)

A arte que se "produz" nas bordas da cidade é diferenciada sim, pois não está preocupada em reproduzir, em menores condições, o que já em sendo feito no circuito metropolitano. Trata-se de uma construção artística autêntica, alta-cultura vinculada na experiência dos seus artistas, que geralmente propõem uma discussão pura sobre questões sociais legítimas e essenciais para a comunidade e sobre a mesma.
A falta de recursos durante construção de um espetáculo, é superada pela criatividade, e a precariedade assumida, vira "forma" e desemboca em uma estética, considerada hoje como "própria da periferia". 
Hospital da Gente surge neste contexto, sua linguagem está enraizada na marginalidade, e seu discurso, através da inversão de valores, é capaz de abordar delicadamente relatos sobre uma realidade violenta. 
(*) Trecho retirado do artigo “No Mundo da Cultura, o Centro Está em Toda Parte”, publicado em fevereiro de 2008, na versão brasileira do jornal francês “Le Mond Diplomatique”, por Eleilson Leite




FICHA TÉCNICA 
Autor: Marcelino Freire
Direção : Mario Pazini
Elenco:
Maira Galvão, Martinha Soares, Naloana Lima, Naruna Costa, Luana Lima, e Paloma Oliveira
Cenografia: Alexandre Souza (João)
Contra-regra: Washington Gabriel
Iluminação: Will Damas
Música (composição e direção musical): Naruna Costa
Sonoplastia—Radio Eita Pôxa FM?: Renato Nascimento
Figurinos: Grupo Clariô de Teatro
Assessoria de Figurinos : Leandro Benites
Adereços: Martinha Soares e Naruna Costa
Técnico palco: Alexandre Souza
Música Beradêro– : Chico César
Arte Visual: Naruna Costa
Fotos: Moisés Moraes
Contos (por ordem de entrada): Nação Zumbi; Trabalha-dores do Brasil, Balé, Muribeca, Totonha, Phoder, Vaniclélia, Darluz, Amor Cristão, Socorrinho, Da Paz e Favela Fênix.
Contos extraídos das obras: Angu de Sangue, Balé Ralé, Contos Negreiros, Rascif e alguns ainda inéditos.

MATÉRIAS/ARTIGOS
(CLIQUE NA IMAGEM E LEIA A MATÉRIA DE BETH NÉSPOLI SOBRE O ESPETÁCULO E GRUPO)

UM (SURPREENDENTE) HOSPITAL DA GENTE:

ARRANHANDO A NEGRA COR DA BOCA NA LINHA DO EQUADOR
(por Alexandre Mate)
Cidade de São Paulo, decorrente de vários processos de luta – tanto de grupos, constituídos apenas por seus integrantes, como da organização/junção de vários grupos, formando uma espécie de sujeito coletivo – assiste-se a trabalhos muito significativos na cena paulistana. Por toda parte, e Álvaro de Campos tinha parcialmente razão quando afirmava em Mestre: que é preciso ter a alma [grande] para ver claro... Muitos são os espetáculos esparramados pelos mais diversos lugares da cidade. Muitos são os espetáculos a conciliar qualidade estética e pertinência social.
Obras brotadas do chão da História, por inúmeros coletivos afinados, apresentam temas urgentes e essenciais, em cuja forma personagens alegóricas, ao abarcar o trabalho de pesquisa estética e o de urgência social, são paridas por lirismo surpreendente. Outro$ quinhentos pelo Engenho, Sepé Tiaraju pelo TUOV – Teatro Popular União e Olho Vivo, A brava pela Brava Companhia, Os arrumadinhos pela Trupe Olho da Rua (de Santos), Homem cavalo & sociedade anônima pela Cia. Estável de Teatro, ComiCidade pelo Buraco d’Oráculo e tantos outros estão entre esses coletivos. Assistir a seus trabalhos normalmente apresentados, fora do circuito comercial, pressupõe longos deslocamentos pela caótica paulicéia desvairada. Assistir a alguns dos trabalhos inseridos nessa espécie de produção marginal – que canta, de acordo com Paulo Freire, o homem inacabado – materializa a percepção, agora com João Cabral de Melo Neto, de que: “Um galo sozinho não tece a manhã.” O imaginário épico-popular potencializa as intervenções de muitos artistas que buscam, por intermédio dos espaços de representação, a troca de experiências com a gente bronzeada que tem mostrado o seu valor.
Outubro de 2008, dia em que a população da cidade de São Paulo elegeu, com 60% dos votos, Gilberto Kassab como prefeito da cidade. Da avenida Paulista até Campo Limpo (trajeto muito longo), nenhuma manifestação, nenhuma bandeira: tudo calmo, nenhum vislumbre de festa ou encantamento. Promovido pelo III Festival Nacional de Campo Limpo, pelos integrantes do grupo Artemanha de Teatro, foi possível assistir ao surpreendente O amargo santo da purificação apresentado pela, não menos surpreendente, Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveis, de Porto Alegre: espetáculo que apresenta “Uma visão alegórica e barroca da vida, paixão e morte do revolucionário Carlos Marighella”, assistido pela comunidade de Campo Limpo e também por Dona Clara Marighella, muito emocionada e feliz. Relativamente próxima de Campo Limpo, e muito próxima a uma das “zonas de fronteira”, no extremo da cidade, encontra-se Taboão da Serra.
“Separando” São Paulo de Taboão da Serra, o nem tanto serpenteante, mas muito conhecido Córrego Pirajussara. Próximo a esse córrego, não agora, mas muito transbordante outrora, à rua Santa Luzia, encontra-se uma antiga casa, agora totalmente cenografada por Alexandre Souza, que abriga o Espaço Clariô. Rua que no passado foi invadida tantas vezes pelas chuvas que alargavam o leito do velho córrego. Rua sem os encantos das belas casas, de árvores frondosas crescendo nas calçadas, sem estilos arquitetônicos ousados ou tradicionais... Rua de uma poesia dura. Rua repleta de crianças e adultos que brincam, conversam, se olham. Rua talvez muito mais aconchegante que as pequenas casas: muito frias no frio e muito quentes no calor. Rua idêntica a milhares de incontáveis outras que riscam o chão da periferia das cidades brasileiras.
Rua Santa Luzia, 96, no Espaço Clariô, o Grupo Clariô de Teatro apresenta, a partir da belíssima e essencial literatura (contos e cantos) de Marcelino Freire, Hospital da gente. Dirigido por Mario Pazini que organizou generosa e poeticamente o material de Freire, a Rua Santa Luiza, a zona de fronteira: São Paulo/Taboão da Serra e as surpreendentes atrizes-criadoras do Grupo. Espetáculo processional, as cenas irrompem nos mais inusitados lugares do espaço-casa-abrigante-de-tanta-denúncia-poética. Laje; mezanino; varanda de sobrado; quarto de prostíbulo; casa de velha moradora; quintal de cortiço; bar de puteiro, lixão... O público, restrito a um pequeno número, desloca-se pelos espaços e acompanha, na maioria das vezes, os relatos de mulheres, que a despeito de tantas injustiças, entendem suas histórias e mazelas.
Mulheres-bomba, separadas pelos maridos, pais, amantes e pela ideologia perversa de um Estado injusto, predador, excludente... Mulheres exploradas, por homens e pregadores de todos os matizes fundamentalistas. Mulheres próximas, e a um triz, do motim. Essas mulheres Marcelino-freireanas são deslumbrantes. São mulheres em cujos textos, algumas vezes, referenciados no chão nordestino, estendem esse território para além das “Boas Viagens pernambucanas”: percorrendo toda a extensão atlântica do país, rumo ao seu interior também. As atrizes-criadoras representam o mais belo dos excelentes achados da obra. O coro feminino que fala do fogo no barraco de Dona Preta é inesquecível. Apesar de haver uma grande coesão e harmonia nesse coletivo feminino, não se pode deixar de destacar: a lindíssima cena de Naloana Lima: a mãe que faz e vende seus filhos, a mãe que troca seu leite por eletrodomésticos; a cena de entrada de uma moradora de rua, e emocionante Totonha, que conta histórias e serve um café celebrante de vida: criadas por Martinha Soares; e (gente, o que é isso!): Naruna Costa: impecável como catadora de lixo e emocionante como a mãe anti-paz, cujo filho foi morto pela polícia. A atriz, não bastasse isso, termina o espetáculo, de modo deslumbrante, cantando à capela: Béraderô, de Chico Cesar.
A trilha sonora, composta a partir de certo sincretismo tem momentos antológicos cantados pelas atrizes, sobretudo o canto de entrada “na terreira do mulheril” e na cena em que a “prestadora de serviços” e a Crente discutem nos palcos superiores.
A criação da cenografia, assim como os cortiços de tantas casas do Brasil, parece – do mesmo modo que os barracos das favelas e as casas em palafita – desafiar as leis da gravidade. O cenário é construído com restos de caixas de madeira, por pregos tortos, por material em processo de esboroamento. A cenografização da velha casa da Rua Santa Luzia, cria uma narrativa (im)pressionante e o quarto de Dona Totonha representa um retorno ao quarto das avós de nossas avós, de nossas avós... Quanto mimo barroco em estado de delicadeza.
Por último, quando vi o nome de Will Damas no folheto-cartaz fiquei muito feliz. Trata-se de um guerreiro da mais digna santidade e a quem nós todos, que acreditamos em teatro bem feito e espalhado pela periferia do mundo, tanto devemos. Em alguns dos bons achados do espetáculo é possível ver a mão firmemente sensível desse-tal-maravilhoso-Will.
Alguns dos espetáculos citados no começo desta leitura crítica fazem parte das grandes obras que tive o privilégio de ver montadas neste ano de 2008. Hospital da gente insere-se também neste universo. O espetáculo, além de bela obra teatral, pressupõe uma significativa troca de experiência, fundamentada em exercício mnemônico (ligado à memória): nós todos temos ou tivemos mãe, irmã, amiga... O espetáculo propõe uma sofisticada e vertical vivência estética. Quando se topa com uma obra dessa grandeza, citando tantos poetas e revolucionários: é possível sonhar com os pés plantados no alhures!
(Alexandre Mate, doutor em História Social pela USP, professor e pesquisador de teatro).


Ventos novos no encontro entre tradição e ruptura
“Hospital da Gente”, do Grupo Clariô, e “Ensaio sobre Carolina”, d´Os Crespos, renovaram os ares da temporada com confrontos e diálogos com as tradições


Por Antônio Rogério Toscano
(REVISTA CAMARIM - EDIÇÃO 42 - 2º SEMESTRE DE 2008.)


Os ares de janeiro soaram como em uma trombeta e, quase visionários, deram o anúncio: João das Neves chegava a São Paulo no início de 2008 com seu brilhante “Besouro Cordão-de-Ouro” e (ainda não se sabia àquela altura, mas) foi o arauto de um jorro de desejos que por aqui se articulava, silenciosamente, desde o ano anterior.
Este jorro/desabrochar emergiu com suor forte de trabalho árduo e com rara beleza, no decorrer da temporada, em espetáculos criados por artistas locais jovens, ávidos por desenterrar dos escombros do esquecimento o depoimento vívido de sujeitos marginalizados e escondidos sob a sombra da histórica distinção racial (e social) vigente(s) no país da mais tardia (e até mesmo atual) escravatura.
Um dos sinais notáveis em todos estes novíssimos projetos (envolvidos, coincidentemente ou não, com buscas afinadas com as de “Besouro Cordão-de-Ouro”, em que quase a totalidade de performers / atores / cantores / dançarinos é constituída por artistas negros esmerilhados por repertório da tradição popular) se faz visível na tentativa rigorosa de estabelecer parâmetros de experimentalismo em suas formalizações cênicas.
Encruzilhados entre a tradição (com resgate de materiais que pressupõem uma idéia de trajetória histórica da miséria e que fazem chegar ao presente a resultante de processos contraditórios e complexos derivados do passado) e o desejo de configurar procedimentos de renovação e de apontamento de caminhos formais experimentais, pelo menos dois grupos importantes surgiram, despontando no circuito teatral com contundentes provocações teatrais avizinhadas (tanto por proximidades evidentes como também por diferenças gritantes) às trazidas pelo vanguardeiro, e profundo conhecedor de tradições, João das Neves.
Foi o caso de Os Crespos, coletivo formado exclusivamente por atores negros ainda em fase de formação (recentemente convidados por Frank Castorf a integrar sua montagem brasileira de Nelson Rodrigues/Heiner Müller e que foram fundadores, enquanto atuaram e estudaram na Escola de Arte Dramática da USP, um núcleo de estudos voltado para o debate das questões urgentes do artista brasileiro negro) e que tem diretor negro trabalhando em seu primeiro espetáculo com materiais textuais extraídos da literatura escrita por autora negra e pobre.
E foi o caso do grupo Clariô, que constituiu na cidade de Taboão da Serra, na Grande São Paulo, a ocupação de um espaço próprio de pesquisa e de exibição (uma casa simples, na Rua Santa Luzia, ao número 96, radical e intensamente cenografada com estruturas rústicas, típicas das favelas e de comunidades periféricas) e que deu impulso a uma cena originalíssima nascida a partir do estudo de uma série de contos do escritor nordestino Marcelino Freire. Aqui, nem todos são negros (nem atores e nem demais criadores), como nos casos anteriores, mas apenas atrizes (negras ou não) ocupam a cena para dar voz à dor própria das mulheres vitimadas pela sociabilidade miserável e à percepção feminina dos horrores deste mundo.
A identificação com um projeto formal nascido da exclusão e da leitura crítica da opressão é o que entrelaça o parentesco estético.
Não passou despercebida, em cada uma destas temporadas, a grande afluência de público negro nas respectivas apresentações – ainda que em ambos os casos o uso do espaço alternativo limitasse a presença a poucos espectadores, confrontados a uma cena feita de alto teor de contato e troca, em um jogo concebido com forte recorte épico.
A maturação dos canais de debate sobre a consciência negra no Brasil (inclusive através do teatro) tem fomentado a recente modificação da auto-estima deste público e, com isso, ocorre aos poucos a amplificação do espectro social que passa a friccionar seu imaginário com o contágio provocado por idéias teatrais. Nestes casos específicos, em que tais projetos não se localizam em palcos criados por projetos culturais vinculados ao (ou dependentes do) poder público, a procura espontânea por espectadores negros revela a necessidade de expressão acumulada pelo tempo histórico e que encontra poucos canais para o escoamento desta sensibilidade.
Se no “Besouro...”, a legenda do capoeirista baiano, narrada pelo texto do sambista Paulo César Pinheiro (quem ainda ouvir o canto sagrado de Clara Nunes, necessariamente há que se deparar com sua poesia), constrói-se com requinte musical e proposição também épica – aliada às fortes tinturas rituais, em uma mestiçagem formal que beira o limite da teatralidade, habitante mesmo da fronteira com as diversas espetacularidades recuperadas da vivíssima cultura popular de origem africana, da dança extática à percussão, das capoeiras aos candomblés –; em “Ensaio sobre Carolina” (de Os Crespos) e em “Hospital da Gente” (do Clariô) uma descrição conceitual semelhante pode ser aplicada.

Mas há diferenças. Elas se tornam evidentes. E podem e devem ser ressaltadas. Dentre muitas: 1) a plasticidade ensaística, com pendor conceitual e uso de mídias referenciais, além da um tanto arrogante influência germanista em “Ensaio sobre Carolina” – afinal, Os Crespos apresentaram um ensaio aberto do espetáculo dirigido por José Fernando de Azevedo na Volksbühne, em 2008; e 2) a crueza da poesia, que não faz esforços para evitar um metódico sabor grotesco, presente em histórias curtas e em fragmentos de narratividade urbana que ocupam os vários cômodos da “casa do povo” do Taboão da Serra, capitaneada pela direção firme de Mário Pazzini, em “Hospital da Gente”.
As variações apontam, em geral, para territórios mais cosmopolistas, menos mitificados, dotados de um horror típico da metrópole. E, mais detidamente, dão suporte e vazão à virulência dos textos enfurecidos e dulcíssimos de Marcelino Freire (www.eraodito.blogspot.com), tanto de “Angu de Sangue” (2000), quanto de “Balé-Ralé” (2003) e de “Contos Negreiros” (2006) – ainda não tinha sido lançado o seu novo “Rasif / Mar Que Arrebenta” (2008), que já se tornou espetáculo em Recife e exercício cênico na Escola Livre de Teatro de Santo André –, como se lê na formalização do tristíssimo “Hospital da Gente”. Ou mesmo no cinismo crítico das perucas loiras e nas demais citações da marcante intertextualidade de “Ensaio sobre Carolina” (que desde o título repõe procedimentos de certa tradição conceitual).
Tais distâncias também são necessárias para dar provas à originalidade dos novos projetos. Mais que tudo, colaboram para filtrar e formatar, com princípios e postulados neo-brechtianos, a devida embocadura da voz excluída transposta à cena. Voz que, na sua origem, no caso dos Crespos, deriva da simplicidade tocante e por vezes rancorosa (para além da compreensível revolta sustentada por sua tenebrosa realidade social), do diário “O Quarto de Despejo”, escrito pela catadora de papel Carolina Maria de Jesus, figura ímpar que se tornou celebridade a partir dos anos 1960, quando teve seus escritos publicados em livro e compreendidos, curiosamente, como literatura documentária de contestação. Em “Hospital da Gente”, a voz é a do autor que expõe que sua escrita não é feita sobre a violência , mas sob a violência - Marcelino Freire. freqüentemente explica que escreve para se vingar dos maus tratos recebidos.
Coincidências, recorrências e derivações existem e não são poucas. Chegam a mapear quase-citações (já que seus processos criativos foram simultâneos e não há razões para pensar em influência direta) à matricialidade de João das Neves, sintomas que são de um pequeno e importante zeitgeist local.
De “Besouro Cordão-de-Ouro” (e a ecoar em seus quase-filhotes), espanta o princípio gerador, que orbita em torno de um centro dolorido, entretanto dialeticamente festivo: sobretudo, a requintada abordagem da identidade negra (em tema e forma, e sob o impacto da potência expressiva de performers também negros e, justamente por isso, pouco ou nada reconhecíveis pelo público, apesar de suas admiráveis trajetórias artísticas), que desloca o olhar do espectador dos focos costumeiros e o faz migrar para as periferias do espaço, do tempo e do pensamento convencionais, por territórios poéticos ainda não mapeados, em que os valores se alteram, em que a ética se refaz constantemente, sob o prisma da experiência acumulada na vivência próxima e diária, costumeira, da violência.
Mas não estão descritos aqui espetáculos violentos e, muito menos, cultivadores de nenhum tipo de glamourização da sensibilidade aturdida e anestesiada do homem contemporâneo. São, pelo contrário, composições delicadas, armazenadas com cenas de raro lirismo, que emergem da suspensão grotesca e da representação rarefeita, mais vinculada à presentificação performática que ao drama.
Palavras de densidade sutil escorrem da expressão de corpos negros mais interessados em dar potência poética à pura presença no espaço-tempo do jogo do que em mimetizar o que já aparece com força razoável na temática aviltante. Não há reiteração, mas caminhos abertos à interpretação, por parte de espectadores ativados crítica e poeticamente.
Da hibridação conceitual, “Ensaio sobre Carolina” faz migrar a busca do olhar do campo fabular convencional para a sobreposição de imagens, em sólido mosaico feito de fragmentos que demonstram sua contundência por si mesmos. Já as cenas independentes de “Hospital da Gente” indiciam um universo plural, irredutivelmente controverso, que passa a rasteira na lógica do senso-comum e faz o horror transbordar da sutileza e da apreensão do que é, inegociavelmente, complexo.
Os atores que aqui despontaram, especialmente Naruna Costa, Martinha Soares e Natalia Kesper (de “Hospital da Gente”), além de Mawusi Tulani, Sidney Santiago, Gal Quaresma e Lucélia Sérgio (de “Ensaio sobre Carolina”), deixam entrever um cenário muito poderoso para as realizações futuras das duas companhias. Precisão e domínio técnico não lhes faltam. Prometem conquistar o mesmo impacto cênico que Maurício Tizumba, Sérgio Pererê, Iléa Ferraz ou Cridemar Aquino em “Besouro Cordão-de-Ouro”, sob a direção do criador de “O Último Carro” (1976).
Em todos eles, o pesquisador que anseia pela renovação está sempre pautado e avalizado pelo comprometimento com o conhecimento conceitual dos materiais que construíram o presente. De quebra, demonstram uma coragem incomum em relação aos projetos das novas gerações. Coragem que diz respeito à auto-afirmação, ao depoimento e à superação de barreiras sócio-econômicas brutais.
Há uma fábula oriental em que a Coragem é representada por uma pequena planta que teima em nascer e florescer, mesmo sob condições adversas, em um terreno tórrido e seco, no deserto das possibilidades. Nesta pequena alegoria zen, a semente-quase-pedra, ali deixada há milênios, poderia permanecer por toda a eternidade sem germinar e o conforto desta permanência seria acalentado pelo medo e pela covardia reinantes no entorno árido, sem vida.
Sem transformação, tudo ficaria como antes e ninguém correria risco algum. Para sempre... Mas, com força extraída sabe-se lá de onde, a semente um dia teima em rasgar sua casca para crescer, verde, sem auxílio de nada que não seja sua própria reserva de água e alimento para dar forma ao novo, à renovação. O entorno, ainda que pouco, muda completamente a sua paisagem. Em meio ao horror, emerge o belo, corajosamente. Não bastasse a petulância de germinar, ainda é preciso arranjar espaço para as folhagens e, depois, para a flor, que desabrocha perfumada no jardim seco do horror.
Nas duas ocasiões, em que os atores negros de “Ensaio sobre Carolina” ou quando as meninas fortes de “Hospital da Gente” abriram suas temporadas para o público, em ensaio-aberto na Alemanha-pós-queda-do-muro ou na longa temporada quando-não-tiver-chuva-porque-alaga nas ruas duras de Taboão da Serra, a sensação pulsante é a de que, como atos de Coragem, de vigor político, um outro campo começa a se desenhar por aquele teatro voltado para a criação de novos olhares. De modo semelhante a “Besouro Cordão-de-Ouro”, um chamado à releitura (e ao redimensionamento) do que seja o lugar atual da expressão teatral está sendo lançado.
Dioniso, no centro de uma gira negra (ou sufi, a depender do texto de Marcelino Freire), em que a macumba e seus tambores também almejam a iluminação através da vivência da poesia e da coragem zen, da narrativa brechtiana ou da performatização multimidiática, é a divindade que aponta o oriente: no cenário desta cena, o novo rito se faz, autêntico, celebrando a renovação que floresce quando se reconhece, amorosamente, a tradição a partir da qual se formou e a necessidade de revitalização dos desertos do presente. Após os aplausos, o grito: Evoé!
Antônio Rogério Toscano é dramaturgo e professor de teoria do teatro na ELT, na EAD e na PUC.


Clariô uma luz na periferia!

Março 13, 2009 · Por Rangel Andrade - RJ
O ano é 2001. Um grupo de artistas se junta em Taboão da Serra com o objetivo de criar um grupo teatral que pudesse refletir sobre a arte na periferia. Quatro anos se passaram e em 2005 é fundado formalmente o Grupo Clariô de Teatro, composto por 8 mulheres e 4 homens.
O ano é 2008. O Grupo monta Hospital da Gente, indicado a cinco categorias no Prêmio Cooperativa Paulista de Teatro, do qual conquistaram três troféus. O espetáculo passou pelo Rio de Janeiro onde teve uma rápida temporada na Caixa Cultural, entre os dias 05 e 15 de fevereiro, mas foi o suficiente para deixar gravado na memória dos cariocas um espetáculo marcante e diferente dos que vêem sendo apresentados na cidade nos últimos meses.
Ao entrar no teatro somos convidados a ser o centro da apresentação, nos tornamos personagens principais ao apossarmos do palco. As cenas se desenrolam á nossa volta como um quadro onde o foco em cada momento muda de lugar, giramos 360º graus e vemos estas mulheres serem reveladas. Cada uma com sua história, sua dor, sua verdade.

O cenário de Alexandre Souza e Gilberto Franco Jr. nos leva para uma viagem pela periferia paulistana. O assentamento se ergue ao nosso redor, vamos conhecendo seus casebres, fazendo parte daquele dia-a-dia. Um dos pontos altos do espetáculo é quando passeamos pela favela: suas vielas, roupas, pessoas e por fim tomamos café com a velha Totonha. É de uma realidade incrível, que chega a doer ver uma senhora naquelas condições de vida.
O teatro começa a levar para o mundo um mundo que sabemos que existe, mas que fingimos não enxergar. Nos cegamos diante das dificuldades do outro, do sofrimento alheio, diante do caos de um capitalismo exagerado ... e vamos vivendo...
Grupos como o Nós do Morro, no Rio de Janeiro, Clariô, em São Paulo e indo mais longe o Bando de Teatro Olodum, na Bahia, iniciaram um novo caminho no Brasil que é o de incluir os excluídos e apresentá-los para o mundo: suas vidas, seus gestos, suas palavras erradas, seus barracões; toda uma cultura periférica que não queremos aceitar, mas que está logo ali num morro qualquer atrás das nossas casas.
Somos convidados há uma nova reflexão no mundo atual: seria o teatro o caminho para a socialização da periferia? Ou estaria o teatro fazendo o trabalho dos nossos governantes?
Um texto forte. Uma sensação de inércia. Um grupo promissor. Um início de reflexão. Uma denúncia ao mundo. Um clarão em meio ao caos. Uma semente que foi plantada. Uma árvore que começa a dar frutos. Um teatro que nos leva... nos leva... nos leva....


"Veja ela ali acessa, dentro da fumaça. Divina.Diz dona Preta: EU É QUE NÃO VOU MORRER DE CINZA"(Marcelino Freire)



http://www.outracoisa.com.br/2009/03/13/clario-uma-luz-na-periferia/